sábado, 26 de outubro de 2019

26-O TRIBUNAL DOS URUBUS


Três acontecimentos quase simplórios de exemplos da impotência do cidadão isolado através da minha situação de estudante não me abandonam à mente. Determinadas ocasiões nos marcam a ferro no âmago do superego que o semblante do ide quebra-nos a máscara mais oculta de caráter que construímos e toma o controle para si, assumindo a personalidade vingativa com o cognome justiça. 

Somos a figura do ódio em sua essência gótica e grotesca; jamais retornaremos a quem pensávamos e demonstrávamos ser. A consciência alterada abruptamente não regressará ao estado de outrora nem sob choque superior.

1° A acusação 
2° O acesso negado 
3° A expulsão 

No primeiro ano do ensino médio, 2002, a diretora deu uma desculpa esfarrapada mudar-me de sala, pondo-me junto com uma turma fora da faixa e do convívio, nunca tinha visto a maioria daquelas pessoas, todavia, aquela foi uma boa sala. 

Um dia, o professor falta sem aviso prévio e logo é substituído. Por falta do diário de classe assinamos numa folha. Então, vejo "ator" grafado em seguida ao nome de alguém. Faço uma brincadeira, troco para "atriz desempregada. 

Um colega próximo sugere: _Bota "popozuda" na fulana._ Outro desenha uma galinha e continuamos a operação: "assaltante", "traficante" e um monte de insultos que esqueci. 

A diretora adentra para transmitir um comunicado. Um sujeito transforma a folha numa carta e entrega à professora, que repassa para a mulher que estava ali por acaso. 

_Estão vendendo um pozinho branco na parte da manhã, e é gente dessa sala. _Jogou verde aquela que se mantivera cerca de dez anos no cargo a custa de ameaçar educandos com sua presença tenebrosa e incompetente sentada ao bureau. 

Nenhum de nós revelou o culpado, o que seria deveras facílimo, uma vez que minha letra é inconfundível de tão feia, fomos expulsos como um bando de galinha que se diz "xô". 

Menos de um mês depois, presenciei a expulsão de outra turma, do terceiro ano, que vaiara a diretora perante todo o corpo discente e docente do turno. O motivo? Ela fez propaganda eleitoral, revelando qual seu prefeito favorito. 

Esquisito é o fato de nunca haver número superior a dois concorrentes e pior é quando eles se unem, um vice do outro, para ganhar daquele que seria o terceiro. Soube, mais tarde, de outras turmas que ganharam a liberdade temporária pelo mesmo motivo do parágrafo anterior e de outros mais banais, que não vêm ao caso. 

Segundo ano, chego atrasado cinco minutos, porém, o porteiro chega muito tempo depois para negar-me acesso à aula.Indignado, dou um soco no moribundo interruptor, uma chapa na porta que antecede o portão e pulo o muro. 

Sou mandado embora sem adentrar a sala de aula. 

_Ele deu uma voadora na porta! _Afirma a coordenadora financeira. Dois anos após ela dava aula de educação física. 

_Quem foi que deu voadora? _Indago. 

Ela limpa a garganta, ergue a cabeça, em postura impecável, e segue rumo à secretaria, calada. 

No terceiro, ocorre caso mais dramático; sou expulso por ir ao banheiro. 

Um dia antes, o porteiro permite a saída de uma colega minha que alega ir fazer aula de capoeira, mentira. Uma segunda, com inveja, tenta sair, mas lhe é vetado o direito. 

No outro, ambas iniciam discussão, dia de prova em que eu estudava piamente. Como vice-líder eleito, levanto, o professor treme lá fora, sinto a angústia em sua alma, não terá controle da situação. 

A diretora surge antes que eu fosse chamá-la, como se minha lente lesse. Manda uma menina embora por estar de chinela e sem a blusa da farda. As zoadentas calam-se. 

O professor entra e decreta: _Ninguém sai. 

Pouco depois, um colega levanta. 

_Onde vai? _Indaga o "Mestre", como ele se intitula. 

_Ao banheiro. 

_Volte. _O cordeirinho obedece. 

Outro repete o gesto. 

_Volte. _Ordena o soberano do giz. 

_Fela da puta! _ Solta um soco no ar. 

_O que ele disse? _Os abutres alunos respondem. O colega é expulso, mas o pai desse, segurança do prefeito, que, no fim do mandato, vende livros recém saídos da fábrica para a reciclagem nesse mesmo ano, 2004, coage o professor.

Aproveito para ir ao banheiro enquanto uma colega pedia repetição da explicação. 

_Espere até o fim da aula. 

_Má rapaz! _Respondo e saio. Depois volto para pegar a apostila do babaca que quase me reprova nesse ano sem que eu ao menos tenha visto a média final; tinha prova no segundo tempo sobre Vargas. 

Interessante é que a peste é meu primo, e substituía uma professora de caráter incompatível com o dele, o anterior, a diretora, a coordenadora de finanças e muitos outros. 

_Vá pra fora! _Berra o cordeirinho obediente que é tão abutre quanto os outros, que logo o imitam. 

_Saia. _Sentencia o juiz do giz. 

_Você poderia ser mais idiota. 

_O que? 

_Você não é môco. 

_Me respeite, rapaz, eu não sou seu "parinceiro" não. 

_Só pode pedir respeito quem exige respeito... 

_Me respeite, eu sou seu professor! 

_Se exige respeito respeitando..._ 

Você tá pensando que é quem? 

_Você não me respeitou. _Saio, escuto a forte pancada na porta. 

Dois dias após, a sentença continua: _Você está suspenso cinco dias das minhas aulas. _O que representava matemática, física e química. Detalhe: A escola pública, cobaia do CREDE, adotara a semestralidade e um tal de AS e ANS, o que significa, grosso modo, que cada falta será multiplicada por dois e meio, logo, cinco vira doze e meio; um número reprovativo. 

Nunca repeti um ano, até agora. Com ódio, iria denunciar no fórum, o que seria pior para mim, à priore e à posteriori, porque hoje é um dos carrapatos do prefeito. Minha cabeça estava tão ardente que esqueci e passei direto para casa. 

A custo, relatei o incidente à minha mãe, ela agiu o mais frio que pode. Pediu a acusação por escrito e xerocou. Depois de muita conversa fora, com aquele que um dia fora seu aluno, ela dispara à queima-roupa: 

_ Mesmo que meu dinheiro se acabe, eu vou à sede do CONSELHO e peço uma sindicância que revele o índice de desistência, neste colégio, de 2000 pra cá. Mando eles perguntarem, a um por um, qual o motivo que os levou a abandonar os estudos. 

No dia anterior, aproveitando que minha sala fora a única mantida no período noturno, os integrantes do corpo docente reuniram-se, às escondidas, para colocarem meu nome no famoso BO, batismo dos alunos, constava apenas a assinatura do sentenciador, que embora primo da diretora, não teria apoio formal. 

Um corvo desprovido de covardia nunca será um bom carniceiro. 

_Eu perdi a admiração que tinha pela senhora. _ Afirma o professor, em último ato, à minha mãe. E conclui, para a secretária: _Ratifica, ou retifica, até a palavra é difícil... Ou melhor, suspende a suspensão! 

A diretora não seria uma boa chantagista de mais de dez anos sem um Az na manga: 

_Agora, você vai explicar para os colegas e os professores o porquê da anulação da suspensão. 

O circo do poder fora armado: No centro eu, minha mãe ao bureau e os palhaços nos espaços restantes. 

Dentre as falas mais significativas da batalha intelecto versus poder destacam-se: _"...gado a gente marca, fere e mata, mas com gente é diferente..." 

_Se ele ao menos pedisse perdão. _Uma abutre colega pronuncia tamanha bobagem. 

_Perdão é para quem se arrepende. 

_Peça desculpas, meu filho! 

_Vai contra minha honra. 

_Diga para eles o que você entende por honra. 

_Segundo um filme que assisti, "honra é uma coisa que o homem dá a si mesmo". Eu não estaria sendo sincero se pedisse desculpas por uma culpa que não tenho. Isso fere o conjunto de valores que adquiri até hoje e que formam meu caráter. 

_O que você entende por caráter? 

_Personalidade, segundo um documentário filosófico que assisti, é "a máscara que pomos para os outros" e caráter a que pomos para nós mesmos, portanto, é o mais próximo daquilo que realmente somos. 

E a que jamais esquecerei é quando o cara que virou diretor de outra escola e que, tempos atrás, tomou, "legalmente", a casa de minha tia-avó materna (hoje já falecida), apertando minha mão como quem derruba gado e fitando em meus olhos o olhar negro da senhora morte, diz: 

_Já se passaram duas horas sem que você fosse ao banheiro. _Respondi ao insulto, entretanto, abutres não escutam o que não lhes convém. Fala perdida. O idiota não sabia da minha vontade tremenda de urinar, maior um pouco da de quebrar-lhe os dentes. 

Na segunda opção eu seria preso, talvez, pois tive o azar de completar dezoito justo quando a lei torna esse número em idade adulta penal. E por ele hoje ser mais um dos carrapatos do prefeito, talvez desse uma complicaçãozinha a mais; se bem que valeria a pena dar uma lição naquele imbecil.

Senti-me dentro da fábula em que a raposa diz: 

_Você é a causa da seca que nos assola, comendo as folhas indefesas que nada lhe fizeram, coitadas. Matem-no!

Estive, na vida real, dentro da estória "o tribunal dos urubus", fui salvo pela Coruja Solidária, deixando de ser o burro da vez.

Guilherme de Almeida finalizaria assim, talvez: "...as aves que aqui revoam são corvos do nunca mais a povoar nossa noite com duros olhos de açoite." 

Nunca mais quero viver outra fábula de La Fontaine.

Ateu Poeta
03/04/2007

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